21.8.08

sertão

O homem apareceu com aquela faca afiada que refletia vermelho, fez um corte vertical da glote até o estômago e
eu nem me assustei. Os flancos de carne e costelas se abriram e lá dentro era sertão. Noite e frio com um céu
cheio de estrelas e peixes e naquele chão seco cheio de feixes brotavam sussurros.

“Não há vagas aqui” ouviu-se de um rasgo, mas o homem já não podia ir mais embora, o corte fechou e trancado
ficou no vazio que ali de fora parecia tão bonito. A cada respiro um lamento, suspiro, gozo, sorriso, gemido.
No peito outro rasgo, a terra se abriu e ele foi engolido.

No sertão se ouvia baixinho mais um sussurro.

12.8.08

Urucum com gordura de anta para pintar os lábios e roçá-los na terra. A boca assim, da cor do solo, poderia soprar todos os ventos num sussurro doce e beijar e mastigar o planeta inteiro.

E se eu como o chão com minha boca pintada de semente? E se eu bebo o vento e as nuvens cheias de raios? E se essa eletricidade vira parte do meu corpo?

Dizem que a Terra foi feita com pedaços do corpo de um gigante.

Se for assim, ofereço o meu pra seguir soprando e chovendo sobre toda esta gente.

9.8.08

*

essa água que chove dentro só faz crescer o rio.

*

6.8.08

no cruzamento da Paulista com a Consolação

um menino muito muito sujo cochicha no ouvido de uma menina. ela grita. NÃO!
o menino abaixa a cabeça e diz pra dentro: será que eu sou tão feio?

olha pra mim. oi, posso te xavecar?
mas você precisa pedir?

me estende a mão e me dá um beijo no rosto

pelo menos você é simpática. eu é que eu estou imundo e fedido.

...

4.8.08

eu me entranhei no tempo feito melaço na pele. um tempo espesso que não corre e abafa os pulmões. vapor quente. não respiro. o tempo é uma névoa densa e eu já não vejo mais nada.

3.8.08

o céu e o inferno


# dos suspiros canibais

não que eu quisesse te engolir desde o primeiro minuto, isso não aconteceu, mas quis sim mastigar e guardar dentro a partir da 34ª hora. só um naco da tua carne pra ficar bem perto da minha apaziguando o sangue e tudo o mais que corre mais rápido por tua causa.

o que acontece quando uma pessoa vai passear no estômago da outra?

eu me imagino de maiô vermelho brincando de colocar a ponta dos dedos nos teus olhos-piscina, ainda me decidindo se vou mergulhar ou não, porque a água é fria e aqui fora está tão quente. me imagino menina passeando pela tua coluna vertebral, nessa árvore enorme que você tem aí, subindo nos galhos pra roubar maçãs. roubar um beijo. e mais maçãs. está tão calor aqui dentro. lá longe se ouve um bolero e eu danço e danço e danço, já é noite e há tantas estrelas pra olhar.

- dança comigo assim sob as estrelas?

- sim.

# dos suspiros intravenosos

Esperava em posição fetal, amuada, com a pele salgada, os olhos sangue, o coração chumbo e uma maçã-veneno no estômago. Esperava a campainha que nunca tocava. Esperava um hoje doce, uma alma nova para se encantar, uma boca que tivesse em seu interior uma orquestra imensa que lhe tocasse Stravinsky ou Gershwin ou Piazolla. Tati Quebra-Barraco também serviria. Pensou em ligar para o 102 e pedir o telefone do disk-coragem ou do disk-saída de emergência. Pagaria o serviço à vista, com um grito-redenção de mulher insone e sairia finalmente de seus lençóis saturados com o cheiro de um anteontem triste